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Notícias - Vigilância em saúde na pandemia viola direitos de personalidade do paciente?

DIREITO CIVIL ATUAL
Vigilância em saúde na pandemia viola direitos de personalidade do paciente?
 

Os direitos da personalidade dos pacientes, que se correlacionam à intimidade, na relação clínica ou hospitalar têm tutela reforçada pelo dever deontológico de sigilo. Esse compromisso de honrar a confidencialidade necessária para a operacionalização dos cuidados de saúde, não é restrito aos médicos, são igualmente responsáveis todos os demais profissionais da área e as instituições que intervierem no caso clínico ou tiverem acesso à documentação.

Não raras são as vezes em que ocorre a devassa dos dados sensíveis dos pacientes, sem que haja a correta ponderação dos direitos da personalidade atingidos, mesmo quando há possibilidade de se mitigar os danos e, ainda assim, conseguir atingir os interesses públicos pretendidos. A pandemia causada pela COVID-19 apresenta uma situação emergencial, em que as providências em sede de gestão pública e sanitária requerem urgência, mas é premente se verificar se a vigilância em saúde necessariamente implica em violação dos direitos da personalidade dos pacientes.

História clínica ou processo clínico é o suporte biográfico da assistência sanitária de um paciente e o seu acesso irrestrito por terceiros pode colocar em risco direitos da personalidade, especialmente a intimidade, o sigilo e a integridade moral e psíquica. Deste modo, a titularidade da história clínica é reflexo da titularidade dos direitos da personalidade, cabe em regra aos pacientes.

Considerando-se que “o serviço da saúde e o benefício social têm limites. Um limite intransponível está no benefício da Pessoa que se destinam a servir. Só esta os justifica [...]”1; há que se delimitar a extensão da vigilância em saúde e da notificação compulsória de doenças e agravos no contexto da pandemia, para garantir a proteção dos direitos da personalidade dos pacientes, e para que se proteja a dignidade contra uma exegese meramente utilitarista do direito à saúde.

Devido à variabilidade biológica, os efeitos dos fatores que causam doenças e suas consequências somente são caracterizados significativamente a níveis grupais2, demonstrando a importância da vigilância em saúde. Trata-se de processo contínuo e sistemático para a coleta, consolidação e disseminação de dados, que mapeia a situação sanitária da população brasileira, denominado;3 e fundamenta-se nos princípios da universalidade, integralidade e equidade.4

Trata-se de medida pública contumaz e essencial na busca pela eficácia do Sistema Único de Saúde, que para conseguir dados bioestatísticos imprescindíveis à uma gestão eficaz da saúde, acaba por ter acesso a conteúdo sensível contido nas histórias clínicas dos pacientes.

A pandemia atual é uma Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional 5 e Internacional, o que faz com que seja mais constante e precise ser mais ágil o acesso dos dados e a obtenção de informações relacionadas à COVID-19, por parte das autoridades sanitárias. Esse imediatismo enseja ampla divulgação informacional, nas plataformas digitais oficiais do governo e na imprensa; ressaltando a necessidade de anonimato sobre os dados identificativos dos pacientes que serviram para a contabilização dos casos da doença.

O monitoramento da extensão doença no Brasil e a análise comparativa com outros países auxilia na gestão da crise, inclusive no que tange as decisões sobre a alocação de recursos públicos para a aquisição de fármacos e de equipamentos biotecnológicos; disponibilização de leitos; e viabilidade e necessidade de medidas de isolamento social, setorizadas ou não.

Nesse aspecto o dever de notificação compulsória é destacado pois obriga os médicos, demais profissionais de saúde e instituições de saúde a comunicarem as ocorrências diretamente ao Ministério da Saúde ou às secretarias de saúde municipal e estadual, que devem, por fim, remeter todas as informações ao Ministério e às demais esferas de gestão do SUS.

Deve ser feita a notificação compulsória quando houver suspeita ou confirmação de doença, agravo ou evento de saúde pública6; em complemento, a Lei 6.259 de 19757, afirma no artigo 7º, inciso I, que se aplica aos casos de doenças que podem implicar em medidas de isolamento ou quarentena, e no insico II, de doenças constantes na relação elaborada pelo MS.

A COVID-19 enquadra-se na previsão expressa no inciso I, o fato de requerer medidas de isolamento e quarentena, já basta para que enseje o dever de notificação. Já sobre o inciso II, a Portaria nº 264, de 17 de fevereiro de 2020, ao dispor a Lista Nacional de Notificação Compulsória, abarca outras modalidades do Coronavírus8, mas nela não consta a COVID-19.

A doença causada pelo Coronavírus na versão atual pode: ser assintomática; ter sintomas leves, configurando Síndrome Gripal; ou ser mais grave, resultar em Síndrome Respiratória Aguda Grave. A Nota Técnica Nº 20/2020 do Ministério da Saúde, de 17 de abril de 2020, ao estabelecer a notificação imediata de casos de Síndrome Gripal via plataforma do eSUS VE e de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave hospitalizada no SIVEP-Gripe, acabou por preconizar o dever de notificação da COVID-19. Há doenças e agravos que são de notificação semanal, porém a infecção pelo novo Coronavírus enseja a notificação compulsória imediata – em até vinte e quatro horas a partir do conhecimento da ocorrência.

Ora, se revelação do estado de saúde de uma pessoa atenta contra a personalidade, por desrespeitar o segredo profissional que se destina à proteção dos doentes9; a providência de notificação imediata, tão necessária para a gestão da crise, demanda mais ainda do Direito um constante controle eficacial da dignidade, igualmente rápido.

O Ministério da Saúde dispõe de modelo de Ficha de Investigação de Síndrome Gripal Suspeito de Doença Pelo Coronavírus 2019 – COVID-19 (B34.2); ela auxilia na padronização da notificação; esclarece quais dados são essenciais para a vigilância em saúde; agiliza o monitoramento e a análise dos dados. Esse aumento de fluxo informacional sublinha a necessidade constante de equilibrar os propósitos públicos com a tutela da pessoa individualizada.

Há cessão, em alguma medida de privacidade, quando se concede aos outros o acesso às histórias pessoais ou aos corpos, mas se mantém algum controle sobre as informações.10 Esse comando é efeito do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, e consequentemente, da liberdade geral de ação; que na acepção positiva afirma que a pessoa é livre para se autogerenciar; e na negativa, impõe abstenção de terceiros, inclusive médicos, de invadirem a esfera individual do paciente.11

Na gestão dos seus desígnios está inserida a autonomia para ampliar ou restringir o acesso de terceiros aos dados pessoais clínicos, mas a carga negativa da liberdade geral de ação não necessariamente é desrespeitada por ser implementada a vigilância em saúde na pandemia atual; tampouco esse procedimento implica em ignorar as características dos direitos da personalidade, violando ou dispondo dos direitos à intimidade, ao sigilo e à integridade moral e psíquica.

Essa regra aplica-se contanto que o procedimento de notificação se atenha ao previsto nas plataformas competentes; não adicionem às fichas outras informações desnecessárias para os fins públicos e vexatórias para os titulares das histórias clínicas; e que as autoridades públicas, gestoras e sanitárias, ajam adstritas à divulgação dos dados necessários.

Em contraposição, situação não condizente com a tutela dos direitos da personalidade é configurada quando se divulgam os dados da COVID-19, sem preservar o anonimato dos enfermos ou mortos. Romper o anonimato não ocorre somente quando há a divulgação da identidade específica do indivíduo infectado, pode ocorrer se os entes públicos, ao publicarem mapas de rastreio dos casos de portadores da doença, forem tão minuciosos a ponto de terceiros conseguirem identificar o endereço dos enfermos, e consequentemente, identificá-los.

Ora, se com o aparecimento da doença cria-se uma nova situação de vida à qual o paciente tem que se adaptar; um reajustamento complicado e multidimensional;12 é indiscutível que o desrespeito aos direitos da personalidade é capaz de piorar os processos secundários do quadro clínico, que eventualmente podem consumir mais energias até que os aspectos fisiológicos de defesa, por ter a potencialidade de afetar a parte psíquica do doente.

De modo que a tutela da intimidade, via o direito ao sigilo médico, é imprescindível para que se proteja e se honre a confiança imprescindíveis ao atendimento clínico e hospitalar; e, por consequência, para que se estabeleça com eficácia a proteção global do enfermo. Em que pese a necessidade e a importância da vigilância em saúde, ainda que em situações extremas de pandemia, é dever da gestão pública não se olvidar que a proteção universal da pessoa, engloba o respeito à individualidade, e que deve-se, ao máximo, buscar a compatibilização entre interesse público e interesse privado.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 ASCENSÃO, José de Oliveira. Ensaios clínicos – ponderações ético-jurídicas. In: GOZZO, Débora; LIGIERA, Wilson Ricardo. Bioética e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012.

2 COGGON, David. A importância da estatística na pesquisa em saúde. Cogitare Enferm. Jan/Mar; 20(1). 2015, p. 10.

3 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE. Curso de Vigilância em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

4 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Vigilância em Saúde. Brasília: 2017. Disponível em: https://www.saude.gov.br/vigilancia-em-saude/sobre-vigilancia-em-saude. Acesso em: 17 de junho de 2020, p. 5.

5 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria 188, de 03 de fevereiro de 2020 . Brasília: 2020. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0204_17_02_2016.html. Acesso em: 17 de junho de 2020.

6 Art. 2º, VI, da Portaria 204/2016, do Ministério da Saúde.
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria 204, de 17 de fevereiro de 2016 . Brasília: 2020. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0204_17_02_2016.html. Acesso em: 17 de junho de 2020.

7 Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências.

8 No item 43 consta “Síndrome Respiratória Aguda Grave associada a Coronavírus. SARS-CoVb. MERS- CoV”.

9 RIPERT, Georges; BOULANGER, Jean. Traité de Droit Civil: D’après le Traité de Planiol. Tome Premier. Paris: Librairie de Droit et de Jurisprudence, 1956, p. 348.

10 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of Biomedical Ethics. New York: Oxford University Press, 1994, p. 418.

11 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Paciente terminal e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Curitiba: Juruá Editora, 2017, p. 36.

12 BALINT, Michael. O médico, o seu doente e a doença. Lisboa: Climepsi Editores, 1998, p. 231.

Renata Oliveira Almeida Menezes é Professora Adjunta de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, professora da Pós-graduação lato sensu da Universidade Federal de Pernambuco, Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais - Universidade Federal de Campina Grande e Universidad del Museo Social Argentino; Mestre e Doutoranda em Direito Privado – Universidade Federal de Pernambuco e Universidade de Lisboa.

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